segunda-feira, 18 de junho de 2012

Aprendi a viver com simplicidade, com juízo,
a olhar o céu, a fazer minhas orações,
a passear sozinha até a noite,
até ter esgotado esta angústia inútil.

Enquanto no penhasco murmuravam as bardanas
e declina o alaranjado cacho da sorveira,
componho versos bem alegres
sobre a vida caduca, caduca e belíssima.

Volto para casa. Vem lamber a minha mão
o gato peludo, que ronrona docemente,
e um fogo resplandescente brilha
no topo da serraria, à beira do lago.

Só de vez em quando o silêncio é interrompido
pelo grito da cegonha pousando no telhado.
Se vieres bater à minha porta
é bem possível que eu sequer te ouça.


1912, Anna Akhmátova

(Outra poesia da minha poeta preferida: esta é para a Caroli...
Ainda vamos à Alcala de Henares - a terra das cegonhas - novamente; com o Paulo dessa vez.)

terça-feira, 29 de maio de 2012

céu de porto alegre

que céu bonito
esse
vermelho vermelho
com uns roxos lilazes:
céu de seca
de quase junho
sem chuva sem frio
O que será desse tempo assim?
Quase junho
de seca, mas que bonito
Vermelho vermelho:
um incêndio no céu.

maira dilli

sexta-feira, 4 de maio de 2012

As coisas que procuro
Não têm nome
A minha fala de amor
Não tem segredo.

Perguntam-me se quero
A vida ou a morte.
E me perguntam sempre
Coisas duras.

Tive casa e jardim.
E rosas no canteiro.
E nunca perguntei
Ao jardineiro
O porquê do jasmim
- Sua brancura, o cheiro.

Queiram-me assim.
Tenho sorrido apenas.
E o mais certo é sorrir
Quando  se tem amor
Dentro do peito.

Hilda Hilst

quinta-feira, 26 de abril de 2012

O ÚLTIMO BRINDE

Bebo à casa arruinada,
às dores de minha vida,
à solidão lado a lado

e a ti também eu bebo -

                            aos lábios que me mentiram,
                            ao frio mortal nos olhos,
                            ao mundo rude e brutal
                            e a Deus que não nos salvou

Anna Akhmátova    

quarta-feira, 11 de abril de 2012

O nascimento do Amor

Há muito tempo... na época dos avós de nossos avós
Numa aldeia Kaxinawá no ocidente da Amazônia brasileira
O primeiro homem e a primeira mulher... olharam para o céu.
Olharam... olharam...olharam... e viram... o sol e viram... a lua
Olharam... olharam... olharam e perceberam... o sol e a lua entreolhavam-se.
O primeiro homem e a primeira mulher entreolharam-se...
Com curiosidade...

Era estranho o que tinham entre as pernas...
Olharam-se... olharam-se... olharam-se
O homem perguntou à mulher... te cortaram?
Não... sempre fui assim,
respondeu a mulher.
Ali havia uma chaga aberta!
Então o homem convidou-a a sentar-se.
Não te preocupes
não te preocupes
não te preocupes
eu te curarei... eu te curarei...
não comas mandioca
não comas banana-da-terra
não comas nada que se abra ao amadurecer...
Eu te curarei...

O homem saiu, foi à floresta.
Retornou com umas raízes, uns galhos e uns cipós...
Preparou um ungüento e passou no corpo da mulher.
Não te preocupes
não te preocupes
eu te curarei.

Beijou-a. Saiu. Foi à floresta.
Retornou. Trouxe folhas, ervas e flores.
Preparou um chá e deu para a mulher beber...
Repetia: Não te preocupes
............... não te preocupes
............... eu te curarei.

Saiu. Foi à floresta.
Retornou eufórico, saltitando e gritando.
encontrei! Encontrei!
Acabara de ver um macaco curando a macaca na copa de uma árvore...

Convidou-a para um abraço, dizendo: é assim, é assim...
Abraçou-a fortemente.
Dos corpos entrelaçados exalou um perfume de cipó,
galhos, raízes, folhas, ervas e flores...
Com tal fulgor
Que o sol e a lua
Envergonhados
Esconderam-se... formando o primeiro eclipse...
Mas, o homem e a mulher continuavam abraçados.
É assim... é assim...
Com tal fervor
Que até os deuses
Morreram de vergonha
Mas... o homem e a mulher continuam.
É assim... é assim...



Lenda Kaxinawá, O nascimento do Amor.
Uma das muitas histórias contadas por Francisco Gregório Filho, que, criança, a ouviu de sua avó, e também leu-a escrita por Eduardo Galeano no livro Mulheres.

domingo, 8 de janeiro de 2012

FÁBULA DE UM ARQUITETO

A arquitetura como construir portas,
de abrir; ou como construir o aberto;
construir, não como ilhar e prender,
nem construir como fechar secretos;
construir portas abertas, em portas;
casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem
(tudo se sanearia desde casas abertas)
portas por-onde, jamais portas-contra;
por onde, livres: ar luz razão certa.

Até que, tantos livres o amedrontando,
renegou dar a viver no claro e aberto.
Onde vãos de abrir, ele foi amurando
opacos de fechar; onde vidro, concreto;
até refechar o homem: na capela útero,
com confortos de matriz, outra vez feto.

João Cabral de Melo Neto

(essa é a minha casa, sempre aberta para todos
de todos os lugares, todas cores, todos credos:
todos que eu de alguma forma gosto, ou aqueles que eu gosto, gostam)

domingo, 11 de dezembro de 2011

A BARCAÇA

Ele embarcou numa mulher
(Um dia, foi numa cidade:
a vida cigana de então
pedia porto onde ancorasse.

Em Sevilha matriculou-se:
se nele é meteco, ninguém
habitou mais fundo esse porto
nem o soube do quê ao quem).

Hoje embarcou numa mulher.
Recifense, ele a chama de barcaça,
que é o barco mais feminino,
é mulher feita barco e casa.

Mas nunca fez por anular
o registro de barca antiga;
na barcaça pernambucana
na proa se lê: "Sevilha".

João Cabral de Melo Neto