domingo, 31 de maio de 2009

da provável explosão

A maior danação é a dúvida
que levo, sob o braço,
como um fardo
ou no bolso.

E sempre se repete
com o mesmo arcabouço fértil.

Não discuto. O embrulho
tem as minúcias contadas, medidas e pesadas.

Pode explodir, granada,
ao mínimo decuido ou ruído.

Que importa?

Guardo-a, dúvida intacta
numa caixa,
com infância
e demais seres e haveres,
até que a morte me faça
soltá-la, com as borboletas
da caixa.


Carlos Nejar ( in Danações).

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prefiro a dúvida intacta à certas certezas
para que eu não me desencante.
Quando eu morrer, abram bem longe a caixa.

sábado, 30 de maio de 2009

A dor é um corredor que não acaba,
não possui logradouros, mesmo sala,
instantes de pousada.
No seu ambulatório,
os episódios menores são maiores
e os relógios penduram-se nos olhos.
E em todas as paredes.

Carlos Nejar - fragmento do poema De rerum natura
in A Idade da Noite.
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( queria que me avisassem antes, para eu poder escolher.
Queria também que o meu relógio não marcasse mais horas assim...
queria continuar amando o inverno, sem sentir frio onde sinto )

quarta-feira, 27 de maio de 2009

No restaurante


- Quero lasanha.
Aquele anteprojeto de mulher
- quatro anos, no máximo,
desabrochando na ultraminissaia
- entrou decidido no restaurante.
Não precisava de menu, não precisava
de mesa, não precisava nada.
Sabia perfeitamente o que queria.
Queria lasanha.

Carlos Drummond de Andrade
- in O Poder Ultrajovem (fragmento da crônica No restaurante).
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na foto uma lasanha muito especial: a melhor do mundo.

domingo, 24 de maio de 2009

TARDE DE MAIO

Como esses primitivos que carregam por toda parte o maxilar inferior de seus mortos,
assim te levo comigo, tarde de maio,
quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,
outra chama, não perceptível, e tão mais devastadora,
surdamente lavrava sob meus traços cômicos,
e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantes
e condenadas, no solo ardente, porções de minh'alma
nunca antes nem nunca mais aferidas em sua nobreza
sem fruto.

Mas os primitivos imploram à relíquia saúde e chuva,
colheita, fim do inimigo, não sei que portentos.
Eu nada te peço a ti, tarde de maio,
senão que continues, no tempo e fora dele, irreversível,
sinal de derrota que se vai consumindo a ponto de
converter-se em sinal de beleza no rosto de alguém
que, precisamente, volve o rosto, e passa...
Outono é a estação em que ocorrem tais crises,
e em maio, tantas vezes, morremos.

Para renascer, eu sei, numa fictícia primavera,
já então espectrais sob o aveludado da casca,
trazendo na sombra a aderência das resinas fúnebres
com que nos ungiram, e nas vestes a poeira do carro
fúnebre, tarde de maio, em que desaparecemos,
sem que ninguém, o amor inclusive, pusesse reparo.
E os que o vissem não saberiam dizer: se era um préstito
lutuoso, arrastado, poeirento, ou um desfile carnavalesco.
Nem houve testemunha.

Não há nunca testemunhas. Há desatentos. Curiosos, muitos.
Quem reconhece o drama, quando se precipita, sem máscara?
Se morro de amor, todos o ignoram
e negam. O próprio amor se desconhece e maltrata.
O próprio amor se esconde, ao jeito dos bichos caçados;
não está certo de ser amor, há tanto lavou a memória
das impurezas de barro e folha em que repousava. E resta,
perdida no ar, por que melhor se conserve,
uma particular tristeza, a imprimir seu selo nas nuvens.

Carlos Drummond de Andrade - in Claro Enigma (Poesia Completa)
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Dá para dizer que essa é uma das mais bonitas do Drummond, ou, a que eu mais gosto?!?
Dá para dizer, só, que ele é o maior Poeta do mundo: Drummond e Fernando Pessoa.

sábado, 23 de maio de 2009

Casa no Campo



Eu quero plantar e colher
com a mão
A pimenta e o sal
Eu quero uma casa no campo
Do tamanho ideal, pau-a-pique e sapé
Onde eu possa plantar meus amigos
Meus discos e livros
E nada mais

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Zé Rodrix e Tavito
(fragmento da música Casa no Campo)

quinta-feira, 21 de maio de 2009

para escrever no meu diário


Sabe aquele ditado "quanto mais eu rezo, mais assombração me aparece"? Pois comigo está assim: não tem lado que eu olhe que esteja a contento.
Desisti de rezar e, até, de ser feliz. Quis, e quis muito ser feliz.
Quando estava já sentindo o gosto e a leveza dessa condição, a Felicidade se virou para mim e, com a cara mais inocente desse mundo, me informou: "Sinto muito, era só um pouquinho. Tenho que ir. Fica bem (eu me preocupo contigo!)."
Não corro mais atrás dessa tal felicidade. Ela é muito vaidosa - pensa que é melhor que tudo neste mundo!
Eu tenho a minha tristeza e ela não me deixa só: a minha tristeza é a minha felicidade.


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foto: casinha em Caxias.

terça-feira, 19 de maio de 2009

ZORONGO


Essas mãos de meu carinho
te estão bordando uma capa
com recamo de alelis
e com esclavina de água.
Quando tu foste meu noivo
pela primavera branca
os cascos de teu cavalo
quatro soluços de prata.
A lua é um poço pequeno,
as flores não valem nada,
o que vale são teus braços
quando de noite me abraçam,
o que vale são teus braços
quando de noite me abraçam.

Federico Garcia Lorca - in Romanceiro Gitano e outros poemas
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(O que vale é o teu abraço quando de noite teus braços...)
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foto by maira - flor de cactus na janela da cozinha (dá uma vez por ano e dura pouquissímos dias).

segunda-feira, 18 de maio de 2009

chovo

Lágrimas brasileiras escorrem pelas paraguas.
Coisa rara: chove torrencialmente Maira em Madri.
E há sol lá fora.


madri, 16/01/08
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sábado, 16 de maio de 2009

DIALÉTICA

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
E em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...

Vinicius de Moraes - Montevidéu, 1960

terça-feira, 12 de maio de 2009

Saudade


Faz tempo
que não visito a cidade
onde me criei

Mais tempo faz
que não vou à cidade
onde nasci

Chegará o tempo
que não terei mais cabelos
quiçá dentes na boca

Estarei assim
completamente desprovido
de raízes.
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Cezar Dias

" um dia um poeta me chamando de flor azul
escreveu que eu tinha criado raízes bem no seu coração.
Tenho cabelos, dentes
e a raiz continua lá, enraizada,
no coração do poeta "

domingo, 10 de maio de 2009

As rosas não falam

Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão enfim

Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar
Pois bem sei que não queres voltar para mim

Queixo-me às rosas, que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai

Devias vir para ver os meus olhos tristonhos
E quem sabe sonhavas meus sonhos por fim

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Adoro essa música!


sábado, 9 de maio de 2009

um diário


Estamos num boteco qualquer do Mercado Público; eu escrevia não me lembro o quê - talvez sobre Antônia, a menina adotada por uns vizinhos da minha rua - no meu pequeno caderno de papel reciclável que está sempre à mão para as frequentes necessidades de escrever dos últimos tempos.
Comento com o Paulo sobre o quanto é deliciosa essa bebida, a caipirinha, e o quanto eu gosto daquelas bolinhas - que rebentam na boca - do limão.
Ele me pergunta, me vendo com a caneta e o caderno, se eu já tinha lido o Diário do Antônio Maria. Disse que não e ele diz que tenho que ler; que eu adoraria!
O Paulo me conta que foram apenas quarenta dias. Só quarenta dias, nos quais o escritor escreveu em dois caderninhos, como esse meu, que viraram um livro (lindo, lindo!).
Me passou, rápida como um relâmpago, uma idéia pela cabeça. É a solução para a precisão de escrever, que me acomete e que anda, de um certo modo incomodando: um diário!
Porque mesmo sabendo, tendo certeza, que forma e tamanho não importam em se tratando de coisa escrita - e sim a qualidade e a beleza - eu andava querendo transformar tudo que eu pensava e escrevia em crônica. E nem sempre é possível, sem comprometer a beleza e a naturalidade do texto.
E para mim, literário é o texto, que revele - de modo simples e belo, com dor ou não - a ALMA.
Como o Antônio Maria e outros tantos por aí, que sabem escrever a alma de tudo (por que tudo tem alma. Até um muro onde brota um capim; uma flor).
De hoje em diante vou escrever o que tenho para escrever, sem me preocupar tanto com a forma, em um diário.
Quem sabe um dia ele possa lido por muitos e, brindado, quiçá, à mesa de um bar.

para o Paulo.

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Antônia

"Maira tu sabes que eu tenho uma filha?", me disse uma vizinha de cinquenta e tantos anos que tem dois filhos já adultos.
Estranhei, mas compreendi o desejo dela em repartir a boa nova. (Talvez o fato de eu ter filhas, tenha provocado essa vontade.) A menininha está com quatro meses, se chama Antônia e, pelo que entendi, os papéis da adoção ficaram, enfim, prontos.
Eu varria a calçada em frente à minha casa quando a ví atravessando a rua; não tinha a mínima idéia do que teria para me dizer. Mas ela vinha com uma cara tão desarmada que percebi, surpresa, que era alguma coisa muito boa. Ví, então, que essa mulher maldosa e afeita à intrigas, tem também um lado bom; generoso. Me contou que Antônia nasceu no dia vinte e dois de dezembro e apenas dois dias depois saía do hospital com eles, ela e o marido: um verdadeiro presente de Natal.
Eu não sabia muito o que dizer perante a felicidade dessa mulher que eu não falava há tanto tempo - mesmo cruzando por ela na rua e no supermercado aqui do bairro - por causa de um cão bull terrier que tínhamos, e de uns comentários nem um pouco inocentes sobre uma pessoa amiga.
Tive a impressão que ela se deu conta disso; me olhou com um pedido antigo de desculpas no olhar. Eu não disse palavra. Um minuto depois, falou: " Aparece ali em casa para conhecê-lä."
Me soou sincero e isento de qualquer maldade o convite. Respondi no mesmo tom: " Vou sim! "
E vou mesmo conhecer a pequena Antônia. Logo, logo. Porque, como dizia minha avó, criança cresce como erva ruim.

terça-feira, 5 de maio de 2009

Alquimias




Minhas filhas trouxeram umas abóboras de Pelotas, e eu hoje me senti meio alquimista transformando abóboras de pescoço em doces de vidro.