segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

O VAIVÉM

Era um dia um velho chamado Zusa, que trabalhava pelo ofício de carapina. A sua oficina era um brinco, sempre muito asseada, a ferramenta muito limpa, tudo nos seus lugares.
Mas a mania do velho era batizar cada ferramenta com um nome apropriado. O martelo chamava-se toc-toc, o formão, rompe-ferro, o serrote, vaivém.
Quando um carapina do lugar precisava de uma, corria logo à oficina do Zusa, a pedir-lhe de empréstimo.
Mas, tantas lhe fizeram, demorando a entrega ou ficando com as ferramentas algumas vêzes, que o velho resolveu parar com os empréstimos.
Certo dia foi à oficina um menino, de mando do pai, e disse:
- Papai manda-lhe muitas lembranças e também pedir-lhe emprestado o vaivém.
Mestre Zusa pôs as cangalhas no nariz e respondeu:
- Menino, volta e diz a teu pai que se vaivém fôsse e viesse, vaivém ia, mas como vaivém vai e não vem, vaivém não vai.

de Contos Populares Brasileiros.
Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que avisso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co tormento,
Para que seus enganos não dissesse.

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabeis que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.


Luis de Camões.
em Sonetos.
Publicado neste blog no dia 24/01/09.

domingo, 18 de janeiro de 2009

O Luciano me falou de uma música do Fito Paez,"Um vestido e um amor" e eu me lembrei do porque eu não usava calça jeans aos vinte e poucos, aos trinta e poucos. Uma vez alguém me disse que eu não ficava bem com essa indumentária tão fácil de usar, tão sem lei. Que fica bem em quase todas as pessoas, que é um pouco uniforme do mundo. Eu era muito magra.
Tinha uns doze anos quando ganhei minha primeira calça de brim. Era uma Lee. Ficava meio grande e, eu meio desengonçada dentro. Mas de qualquer forma era linda. De morrer. Um luxo que minha mãe não teve coragem de negar. Presente de uma daquelas idas à cidade uruguaia de Rio Branco, onde eles ( meus pais, tios e o avô Augusto) compravam mantimentos, lã para tricô (para a confecção de pulôveres, casacos, etc) e algumas roupas por preços mais acessíveis.
Voltando ao presente - já passado também; num certo dia de outubro coloquei um jeans bem simples e uma camisa cor de vinho com florezinhas e fui ao encontro de um grande amor. Ele disse que eu estava linda assim.
Desde então não parei de usar as ditas calças de brim azul. Gosto que sejam confortáveis e com o cós baixo. E adoro as de boca de sino, como nos anos 70.

Algumas vezes vestida com o meu jeans preferido - já bem surrado - camiseta cavada rasteirinha nos pés e a cabeça cheia de ilusão saio atrás do grande amor. Na maior parte do tempo, entretanto, à cata só de um pouco de felicidade.

sábado, 10 de janeiro de 2009

A perfect day


Tenho a impressão que a falta e tempo é uma desculpa também para o que seria falta de inspiração. Na verdade inspiração não me falta e não falta para ninguém que tiver olhos para ver e coração para sentir. Não precisa muito: é só olhar para os lados ou para dentro. Idéias eu tenho, mil, para escrever. Por que desde que me conheço por gente sou viagem e viajante. Esta estória, por exemplo, aconteceu quando eu era bem criança. Minha professora, Niedi Leonidia, me contou sobre uma viagem à Florianópolis e, eu, de tão encantada que fiquei me adonei, e passei a dizer a quem quisesse ouvir que conhecia a cidade ilha - contava detalhes até; muito antes de conhecê-la e me apaixonar de verdade por ela. Até que minha mãe descobriu e me deu uns cutucões. Não adiantou muito nunca mais parei de viajar ( ah, e de distribuir gratuitamente sementes de viagens). Minha mãe é, e nem ela desconfia, um pouco culpada disso. Me ensinou muito cedo a ler.
Andava preocupada com os dias passando e nada de escrever. Os meus pensamentos, aqueles que viram textos, meio bêbados e confusos, me abandonaram nas festas de final de ano e agora já no ano novo continuavam, preguiçosos, de férias. O que acontece é que aquela enxurrada de pensamentos (que me tirava o sono e o sossego), textos quase prontos, precisando na maioria das vezes de uma lapidada miníma, cessou. Parou. Talvez por que coisas incrivelmente graves aconteceram de lá para cá. Então mente e corpo se ocuparam de coisas outras que não o escrever.
Agora o processo me parece mais suave e maduro. Mas persiste insistente. E bateu à minha porta e me intimou.
Acordei pronta para recomeçar, sem desculpas, sem resistências, deixando as idéias me tomarem por inteiro. Com a alma leve, delicadamente como quem reaprende a caminhar aqui estou a escrever nesta manhã de sábado.
O tempo esse mesmo que aleguei falta, me presenteou com um dia perfeito: chove lá fora. Chove uma chuva miuda, constante e fria. E o céu do meio-dia está de um brancoamarelado que nunca vi; leitoso, pondo uma luminosidade irreal nas coisas.
É isso que me toma neste momento. O imenso céu branco e os hibiscos cheios de flores nos galhos encurvados. Encharcados, mal se abrem mas mesmo assim me encantam os Mimos de Vênus. E enfeitam o pátio.
Nada mais tenho a dizer. A não ser que este é o canto que mais gosto da casa. Este, que sai da cozinha para o pátio com mesa e cadeiras e hibiscos cor-de-rosa.
Mesmo que a vida não esteja nem um pouco dessa cor é sempre um alento sentar ali e poder ver (sentir) desde as pedras cor de ferrugem da parede do fundo ( o cavalo marinho azul no mar laranja os vasinhos com flores pimenta manjericão o touceiral de bambus os gerânios na janela os hibiscos) até a bananeira - aquela famosa de Floripa que está cheia de frutos e que já rendeu pães de banana de tirar o chapéu, que foi literalmente tirado pelo Rodrigo de Boer numa reverência ao pão e à padeira. Ou simplesmente ficar olhando para o céu, pensando na vida ou em nada, tomando um café, conversando se tiver com quem, lendo, ouvindo música, de pernas pro ar. Afinal estou de férias.
E neste janeiro não viajo. só no pensamento.



foto: eu, em Ponta das Canas Florianópolis.



segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Tubarão com a faca nas costas







Duas vezes apontei uma faca para alguém. A primeira, lembro-me nítido, foi na madrugada em que o Brasil jogou contra a Inglaterra, pelas quartas de finais da Copa do Mundo de 2002. Quando abri a porta de casa. embriagado de cuba libre e cerveja, meu pai, com uma cara que não consigo descrever, disse: "estamos sendo assaltados". O ladrão, sujeito grande, mas vesgo de drogado, decidiu pegar o que já estava à mão e sair por onde entrei. Depressa fui à cozinha, apanhei da gaveta uma faca e corri escada abaixo atrás dele. Não foi difícil de alcançar: ele estava atrapalhado com a bolsa de viagem numa das mãos e o aparelho de som na outra. Apontei-lhe a faca sei lá com que intenção; para não ser pego, ele jogou em cima de mim o que pretendia roubar e saiu correndo rumo à escuridão de uma ruazinha próxima.
Mesmo voltando para casa com todas as coisas que o ladrão quisera levar quase intactas ( o aparelho de som estava um pouco avariado), fiquei assustado com a possibilidade de esfaqueá-lo. Lembro que pensei em como teria me sentido se tivesse, realmente, furado aquele sujeito. "Mal", foi a resposta que me dei. Porque não faz parte da minha índole tal gesto.
Porém, esses dias apontei de novo uma faca para alguém. Na verdade, para um cachorro. Mas chamo-o "alguém" porque ajudei a criá-lo. Trata-se do Shark, o bull terrier da filha da minha namorada. Ele, que sempre foi dócil enquanto filhote, de uns meses para cá, mesmo me vendo com bastante frequência, vinha se mostrando agressivo, rosnava e até tencionou me morder algumas vezes.
Foi por um descuido - ele deveria estar sempre preso - que o bicho entrou na cozinha, onde me encontrava tomando café, e se pôs a rosnar do meu lado e a investir contra mim, quase me mordendo o rosto e arranhando-me nos braços e costas. Depois, quando finalmente consegui ficar de pé, ele parou na minha frente, latindo com ferocidade e querendo me morder. Então, vi em cima da mesa uma faca, pequena, dessas que usamos para empurrar a comida para cima do garfo. E para a minha tristeza, a dele e a da minha namorada, não só apontei-lhe a dita. Como ele veio para cima de mim com patas e dentes, cravei-a em seu cangote.
Não gostei nada de ter feito isso, mas na hora não consegui pensar noutra coisa. Pobre bicho. Com a lâmina inteira cravada em sua carne, acalmou-se e foi choramingando para baixo da mesa. Logo depois voltou para o quintal, de onde não deveria ter saído.
Agora ele está bem. A lâmina, retirada pelas mãos bondosas da minha namorada, não perfurou nenhum órgão vital nem lhe rompeu qualquer importante veia. Mas o dia, esse ficou capenga, esquisito. E tínhamos acordado com o espírito preparado para a comilança, para a música e para as boas risadas que um sábado agradável pede.

do livro Tubarão com a faca nas costas, Cezar Dias.

domingo, 4 de janeiro de 2009

O espinho

Entrando no protreiro dos cavalos, Platero começou a mancar. Apeei.
_ Homem, que te aconteceu?
Platero, quase sem tocar com o casco a areia ardente do chão, erguera um pouco a pata direita, mostrando-me nela um espinho.
Com maior solicitude, sem dúvida, do que a do velho Darbón, seu médico, virei-lhe a pata para cima e olhei o pequeno acúleo ensanguentado. Era um espinho longo e verde, de laranjeira, como um fino estilete de esmeralda. Penalizado do sofrimento de Platero, arranquei o espinho. E levei o pobrezinho ao arroio dos lírios amarelos, para que a água corrente lhe lambesse a pisadura, com sua língua generosa e pura.
Depois, tocamo-nos rumo ao claro mar, eu adiante, ele atrás, rengueando ainda e dando-me leves cabeçadas nas costas...

Juan Ramóm Jiménez - Platero e eu
Esta estória do espinho na pata do burrinho Platero - tão doce - me fez lembrar de um animal não doce, mas muito amado, o Shark. Por conta de sua agressividade, já está morto; e pelo mesmo motivo virou estória e título de um premiado livro de crônicas: Tubarão com a faca nas costas.