segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

PASSOU

O ano passou. Não sei se vós, leitor amigo, ou vós, distinta leitora, o passastes bem. Eu, como já passei muitos, os tenho passado de todo jeito, e ainda hoje êsse segundo que vem depois da meia-noite me perturba. Já passei ano só, em terra estranha, ou, o que é mais amargo, na minha; ou andando como um tonto na rua ou afundado num canto de um bar ruidoso; tentando inùtilmente telefonar; dormindo; com dor de dente. E quando digo de todo jeito estou dizendo também de jeito feliz, entre gente irmã ou nos braços de algum amor eterno - braços que depois dobrariam a esquina do mês e da vida, e se foram, oh! provàvelmente sem sequer a mais leve mágoa nos cotovelos, apenas indo para outros braços.
Passam os anos, passam os braços; mas fica sempre, quando a terra dá outra volta em si mesma, essa emoção confusa de um instante. Conheço pessoas que fogem a êsse segundo de consciência cósmica, afetando indiferença, indo dormir cedo - como se não estivessenm interessados em saber se esta piorra velha dêste planeta resolveu continuar girando ou não. É singular que entre tantas festas religiosas e cívicas nenhuma chegue a ser tão emocionante e perturbe tanto a humanidade como esta, que é a Festa do Tempo. É como se todos estivessem fazendo anos juntos; é o aniversário da Terra.
Se a alma estremece diante do Destino, o espírito se confunde; reina uma tendência à filosofia barata; vejam como eu começo a escrever algumas palavras com maiúsculas, eu que levo o ano inteiro proseando em tom menor, e mesmo o nome de Deus só escrevo assim para não aborrecer os outros, ou para que eles não me aborreçam.
Já ao nome do diabo, não; a êsse sempre dei, e dou, o "d" pequeno, que outra coisa não merece a sua danação. A êle encomendamos o ano que passou e a Deus o Nôvo. Que vá com maiúscula também, êsse Nôvo; fica mais bonito, e levanta nosso moral.
E se entre meus leitores há alguma pessoa que na passagem do ano teve apenas um amargo encontro consigo mesmo, e viveu êsse instante na solidão, na tristeza, na desesperança, no sofrimento, ou apenas no odioso tédio, que a êsse alguém me seja permitido dizer: "Vinde. Vamos tocar janeiro, vamos por fevereiro e março e abril e maio, e tudo que vier; durante o ano a gente o esquece, e se esquece;é menos mal. E às vêzes, ao dobrar uma semana ou quinzena, às vêzes dá uma aragem. Dá, sim; dá, e com sombra e água fresca. E quem vo-lo diz é quem já pegou muito sol nos desertos e muito mormaço nas charnecas da existência. Coragem, a Terra está rodando; vosso mal terá cura. E se não tiver, refleti que no fim todos passam e tudo passa; o fim é um grande sossêgo e um imenso perdão."

Rio, janeiro de 1952
rubem braga - a borboleta amarela

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

fantasmi

À noite não durmo bem. Os fantasmas me assustam e perturbam meu sono. Para afastá-los me desmancho em pedaços. Aí eu durmo exausta da batalha inglória - são tantos e enormes i fantasmi. De manhã quando me percebo despedaçada, eu choro sem saber o que fazer. Aos poucos vou me juntando me refazendo até que, inteira, eu consiga andar. Tenho que parar de chorar e comer um pouco e pensar no que fazer durante o dia. Ir, até onde a pouca força que me resta levar.
Tem um fantasma que me persegue também durante o dia, talvez por isso mesmo seja tão cruel. É o mais novo deles: o ciúme.
Doloroso e amargo é o gosto da gelosia.

Escrito em julho de 2008.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Sonho

No quarto do hospital
a filha sonhou pela primeira vez
com o pai morto. De roupas claras -
calças brancas de algodão
e camisa amarela (de sol), dava água aos beija-flores
no velho jardim de camélias, tão bonito!,
em frente ao casarão.

Caminhava tranqüilo
sem bengalas, seu Vitor.


by maira dilli - começo de dezembro.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

1. MURALHAS

Sem consideração, sem piedade, sem pudor,
grandes e altas muralhas em torno de mim construíram.

E agora estou aqui e me desespero.
Outra coisa não penso: este destino devora meu espírito;

porque muitas coisas lá fora eu tinha que fazer.
Ah! quando construíam as muralhas, como não dei atenção?

Entretanto, jamais ouvi batidas ou rumores de pedreiros.
Imperceptivelmente, encerraram-me fora do mundo.


Konstantinos Kaváfis
poemas de K. Kaváfis

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

CHE FECE... IL GRAN RIFIUTO

A alguns homens chega um dia
em que devem o grande Sim ou o grande Não
dizer. Surge imediatamente aquele que tem
pronto em seu íntimo o Sim, e dizendo-o

prossegue na honra e em sua convicção.
Aquele que negou não se arrepende. Se lhe perguntassem de novo,
não, diria outra vez. E contudo o acabrunha
aquele não - justo - durante toda a sua vida.


Konstantinos Kaváfis,
em Poemas de K. Kaváfis

A menina e sua avó

A menina dormia
tranqüila, acarinhada
dentro do pijama da avó

Selogene (Sofia) - a vó
com nome de orquídea,
custou a conciliar o sono
esta noite.

by maira dilli
para Selo.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

O PASTOR AMOROSO perdeu o cajado,
E as ovelhas tresmalharam-se pela encosta,
E, de tanto pensar, nem tocou a flauta que trouxe
para tocar.
Ninguém lhe apareceu ou desapareceu. Nunca mais
encontrou o cajado.
Outros, praguejando contra ele, recolheram-lhe as
ovelhas.
Ninguém o tinha amado, afinal.

Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa,
viu tudo:
Os grandes vales cheios dos mesmos verdes de
sempre,
As grandes montanhas longe, mais reais que
qualquer sentimento,
A realidade toda, com o céu e o ar e os campos que
existem, estão presentes.
(E de novo o ar, que lhe faltara tanto tempo, lhe
entrou fresco nos pulmões)
E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor,
uma liberdade no peito.


poema de Alberto Caeiro.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Bicho Grilo


para Maira Dilli


estava numas
de querer levar a vida
só com o inspirar e o expirar

até que apareceste
assobio nos lábios

desde então
- e não é raro -
sinto falta de ar


Cezar Dias - em Poemas no Ônibus
décima primeira edição

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

sinos de Belém



Tenho um colega, o Carlos, que numa das vindas do trabalho para Porto me falou sobre a etmologia da palavra companhia (a propósito da boa companhia dos dois, dele e do Juliano). Vem de companheiro, o que implica companheirismo, amizade; no final das contas, amor. Que encontramos em qualquer pessoa, não necessariamente companheira; nem tão pouco amiga: só generosa e de bom coração. É o caso desse Carlos que me ofertou ombro numa desesperada manhã de agosto - corajoso Carlos, era feio o quadro e ele teve sucesso.
E é por querer muito bem a meu irmão e à mulher que vou quase todas as tardes ao Hospital Moinhos de Vento fazer companhia a ela, que está lá há exatos vinte e dois dias porque uma bactéria ingrata se alojou em sua coluna de ébano, provocando toda espécie de dor.
Nós, visitas ou acompanhantes dos pacientes - que têm mesmo que ter muita paciência -, inventamos e reinventamos histórias para distrair dores doenças medos. Se dá muita risada, se brinca, se fala muita bobagem naquele quarto de hospital onde está a Cátia (é este o nome da minha cunhada), que de uma certa forma até relaxo quando estou ali. Ontem, porém, foi um pouco diferente.
Quando saí do elevador, vi o séquito de mulheres cantantes corredor adentro. Logo alcancei o pequeno grupo e me deixei envolver pelo canto de Natal : " toca o sino pequenino, sino de natal, já nasceu Jesus menino para o nosso bem ". Nessa hora não me fez nenhum bem: olhei para a Cátia, sempre tão disposta e alegre, parada à porta do quarto com toda aquela parafernália do soro, longe das crianças há tantos dias, se fazendo de forte com um sorriso triste nos lábios resignados. Que bem há nisso?
Abracei-a com os olhos cheios d'água. Ela me disse, disfarçando, que o coral passava todas as tardes de quinta e que já não se emocionava.
Não fui uma boa companhia nesse dia - lembrei que algumas datas não felizes para mim estão bem perto...
Saí triste dos moinhos. Acabrunhada.
.
foto by maira - Esculturas no Porto Velho, Barcelona.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

crônica para Bruna


Entrei sorrindo no trem. Um homem me olhou e sorriu também. Riu de mim, para mim? Não sei - pode parecer estranho alguém sorrindo do nada e os homens não estão acostumados a sorrisos de graça.
Hoje é quarta- feira o Inter joga e deve ganhar, eu espero, o título inédito. Mas não é por isso que entrei sorrindo no trem: foi a Bruna que me deu uma felicidade inesperada às sete da manhã, com a simples presença dela! (A outra, esperada alegria, talvez venha à noite com a vitória do time do coração.)
E é por essas e outras que a vida vale a pena. Vale a pena o exercício dessa profissão ,que eu não nasci para e é quase um sacerdócio, e tantas outras coisas que a gente passa.
Mas como bem disse Fernando Pessoa " tudo vale a pena se alma não é pequena "; e a minha, graças a não sei que deuses, é grande e amorosa.
Se assim não fosse, porque uma guria que foi minha aluna por poucos meses há dois anos atrás, me diria " Oh, sorinha quando é que a gente vai se ver de verdade?"
Isto depois dela ter me segurado pelo braço, em meio à multidão opaca (irreconhecível) dos terminais de transporte urbano - já é a terceira vez que nos encontramos assim - ela chegando e eu indo pro trabalho; de um abraço muito apertado e demorado e do sorriso mais lindo e escancarado, de aparelho, da Bruna.

Desse jeito, só posso ser feliz... e se Deus quiser o Inter ganha.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

NÃO TE QUERO senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Te quero só porque a ti te quero,
Te odeio sem fim, e odiando-te rogo,
e a medida de meu amor viageiro
é não ver-te e amar-te como um cego.

Talvez consumirá a luz de janeiro
seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história só eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor a sangue e fogo.


Pablo Neruda - CEM SONETOS DE AMOR
... uma das preferidas.