quarta-feira, 28 de outubro de 2009

POEMA DE SETE FACES


Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

...................................
Carlos Drummond de Andrade
(in Alguma Poesia)
..................................
(Também eu, às vezes penso, que Deus anda esquecido: num descaso comigo - pegando pesado.
Até parece que Ele não sabe o quão fraca sou. E o quanto não sei ser só.)

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

SAUDADES, só portugueses
Conseguem senti-las bem,
Porque têm essa palavra
Para dizer que as têm.

Fernando Pessoa
(uma quadra ao gosto popular).

domingo, 25 de outubro de 2009

FUTEBOL

Futebol se joga no estádio?
Futebol se joga na praia,
futebol se joga na rua,
futebol se joga na alma.
A bola é a mesma: forma sacra

para craques e pernas-de-pau.
Mesma a volúpia de chutar
na delirante copa-mundo
ou no árido espaço do morro.
São vôos de estátuas súbitas,
desenhos feéricos, bailados
de pés e troncos entrançados.
Instantes lúdicos: flutua
o jogador, gravado no ar
- afinal, o corpo triunfante
da triste lei da gravidade.


Drummond, in Poesia Errante
.................................
(Dá-lhe Inter!!!)

sábado, 24 de outubro de 2009

APOSTILA


APROVEITAR o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linhas...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Mílton ou Virgílio!
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais
nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo
que se não vê)...
Pôr as sensações em castelos de cartas, pobre China
dos serões,
e os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil...

Imagens de jogos ou de paciências ou de
passatempos...
Imagens da vida, imagens das vidas,
imagens da Vida.
Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência
desconheça...
Não ter um ato indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com
propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao
canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é
triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco
minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros
minutos?!
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Aproveitar o tempo!...
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou
de ser!
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Fernando Pessoa
(Ah, esquecer, desmemoriar: que benção, seria, pr'alma!)

quinta-feira, 22 de outubro de 2009


NINGUÉM ME DISSE quem tu eras,
Ninguém falou de que virias...
Vieste, e havia primaveras
Em que só tu florias...

Não sei ainda se vieste
Pois não distingo o sonho e a vida.
Sei qual o bem que me trouxeste,
Mas não me foi guarida.

Era um desejo começado,
Era um anseio por achar.
Só me resta do teu agrado
O tornar-te a sonhar.

Fernando Pessoa, in POESIA.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009




QUEM ME DIZ que sou quem julgo?
Os doidos é que estão certos.
Por bem ou mal, não promulgo...
Mas quem dera ter abertos

Os ouvidos ao segredo
Da fantasia que engana
E ser quem não se é sem medo
Segundo a maneira humana!

Todos sabem a verdade
Menos eu, que a procurei
Com tanta sinceridade!

Fernando Pessoa, in POESIA.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

NADA FICA de nada. Nada somos.
Um pouco ao sol e ao ar nos atrasamos
Da irrespirável treva que nos pese
Da humilde terra imposta,
Cadáveres adiados que procriam.

Leis feitas, estátuas vistas, odes findas -
Tudo tem cova sua. Se nós, carnes
A que um íntimo sol dá sangue, temos
Poente, por que não elas?
Somos contos contando contos, nada.

Fernando Pessoa
.....................
(Li esse poema , no Odeon, hoje - e alguém, uma moça, gravou - não sei com que fim.)

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra
de um livro raro.
Como desencantá-la?
É a senha da vida
a senha do mundo.
Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira
no mundo todo.
Se tarda o encontro, se não a encontro,
não desanimo,
procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura
ficará sendo
minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade, in Poesia Completa.

domingo, 18 de outubro de 2009

NÃO SÓ quem nos odeia ou nos inveja
Nos limita e oprime; quem nos ama
Não menos nos limita.
Que os deuses me concedam que, despido
De afetos, tenha a fria liberdade
Dos pícaros sem nada.
Quem quer pouco, tem tudo; quem quer nada
É livre; quem não tem, e não deseja,
Homem, é igual aos deuses.

.Fernando Pessoa
.....................
( Adoro esse poema!)

sexta-feira, 16 de outubro de 2009

DURMO só por cansaço,
Não por um sono meu,
E há um vago, abstracto laço
Fora do tempo e espaço
Com quem alguém me prendeu...

Pareço estar disperso
Num abismo de mim -
E acho tudo o que penso
Feito de um corpo denso
A cousa alguma afim.

Fernando Pessoa, in POESIA 1931 - 1935

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

PARTE-TE contra a parede,
Coração que ninguém quer!
Alma com fome e com sede
Só do que não pode haver
O que te há-de suceder?

Cai no lixo e fica lá,
Anseio que és somente
De ir buscar o que não há
Onde os não hás não são gente!
Quebra-te coisa que sente!

FernandoPessoa , in POESIA.

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Vira Virou

Vou voltar na primavera
E era tudo o que eu queria
Levo terra nova daqui
Quero ver o passaredo
Pelos portos de Lisboa
Voa Voa
Que eu chego já
Mas se alguém segura o leme
Desta nave incandescente
Que incendeia a minha vida
Que era viajante e lenta
Tão faminta da alegria
Hoje é porto de partida.
Ah, vira virou
Meu coração navegador
Ah, vira virou
Essa galera...

(Kleiton & Kledir)


terça-feira, 13 de outubro de 2009


" Mas leio, leio. Em filosofias
tropeço e caio, cavalgo de novo
meu verde livro, em cavalarias
me perco medievo: em contos, poemas
me vejo viver. Como te devoro,
verde pastagem. Ou antes carruagem
de fugir de mim e me trazes de volta
à casa a qualquer hora num fechar
de páginas?"

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(fragmento de um poema do Drummond, in Biblioteca verde)
E a Feira do Livro está aí, de novo, pertinho.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Segunda-feira

Acordei de alma lavada: andamos, por lugares de sonho, juntos a noite inteira. Ouvimos música, nos amamos, conversamos. Até cantar, cantei.
Nos redimimos e voltamos. Acordei.
(Ao meu lado, o morro anil de edredon.)

domingo, 11 de outubro de 2009

Domingo


A chuva lavou tudo neste domingo: menos minha alma.
(O que fazer com dias de chuva - com os de sol - com os dias?)

Chuva


A chuva lavou tudo neste domingo: menos minha alma.
Queria a alma lavada e cansaço no corpo
Nada fiz, impotente.
A chuva chove onde quer e quando.
Eu, não sei mais o que faço: não tenho escolha
nem saida. Só o desespero de um dia e o outro
De sol que não aquece do frio; de chuva que não finda o estio
Da minha alma: à margem, faminta
Desgraçada.

sábado, 10 de outubro de 2009

EM QUE PARTE de que caminho
Vou eu, que não sei onde vou?
Na rua sei onde é que estou.
Na vida ignoro onde vou vizinho.

Não sei onde há esquina ou beco
Na vida vã que vou seguindo.
Sei que vou indo, ou não vou indo.
Não sei se, indo ou não indo, acerto ou peco.

Ah, a desgraça nossa, que é
Na vida escura caminhar
Por ir, e nunca por andar!
Que farei? Ir, ir estúpido e com fé...

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

POR AÍ ALÉM

Deixa um momento o asfalto, vem comigo,
entre jogos de sombra e claridade
conhecer a cintura da cidade.

Respira a plenitude do silêncio
destes montes e montes sucessivos
que ignoram a dor dos seres vivos.

Mergulha no mistério vegetal
da mata exuberante, onde as lianas
e as bromélias se calam, soberanas.

E na imobilidade do saveiro
diante da igrejinha, vai sentindo
o que é doçura e paz na hora fluindo.

Carlos Drummond de Andrade
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(capão do leão, serro.)

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

SIGNO

Fugias do escorpião
lá no quarto-de-guardados
como quem foge do Cão
sem perceber que o trazias
desde o primeiro vagido
oculto em teu coração,
e por onde quer que fosses,
julgando que te guiavas,
era dele a direcão,
e tudo que amas, iluso
de uma ilusória opção,
é ele que te sugere,
te comanda, sorrateiro,
com seu veneno e ferrão,
de tal sorte que, mordido,
e mordente, na aflição,
de nada valeu, confessa,
fugires de escorpião.

Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Ida,108 anos.

Na sala dos professores falávamos sobre fases da vida: paixões - que é fase de vida inteira para muitos -, maturidade, etc.
 Um falou sobre a fase da dor, que um dia todos sentiremos dor aqui, dor ali... Eu discordava dessa fase, obrigatória, da dor. O colega que havia puxado a conversa (ao me ver falando sobre o amor e a paixão), concordando comigo, em como tudo é relativo e que cada um é um, contou de uma tia que morreu aos 108 anos sem ter nunca se queixado de dor.
E se teve, alguma, ninguém lembra ou está vivo para contar: ia somando anos como se não fizessem o menor peso, a tia.
Ida, era o nome dela.
Um dia acordou pedindo que colhessem laranjas do pé, queria um suco de verdade - não queria esses de caixinha, artificiais, sem graça, aguados. A neta que estava por ali apanhou, espremeu as laranjas, satisfez a vontade da avó. Ela bebeu tranquila; tranquila agradeceu. Se ajeitou na velha cadeira e, esquecida de tudo que andava, se lembrou de morrer naquela hora.
Levando o gosto bom das laranjas foi, Ida.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Os meninos da rua Paulo


" Nemecsek tirou o chapéu.
- A quem cumprimentaste ? - perguntou-lhe Boka.
- Não há ninguém em toda a rua.
- Cumprimentei ao Senhor Professor Rácz - respondeu baixo o lourinho.
Boka pôs-se a chorar. Apressando-se, arrastava o amiguinho, enquanto a escuridão envolvia a rua.
Entretanto, no grund, Kolnay criou coragem e disse ao homem de barba preta:
- Olhe, esse Nemecsek é um mentiroso. Nós o proclamamos traidor e o expulsamos da sociedade.
O pai, feliz, concordou:
- Não me admira. Não gostei da cara dele: deve ter um peso na consciência.
E foi-se para casa, contente, ansioso de perdoar ao filho. Na esquina da avenida de Üllö ainda viu Boka ajudando Nemecsek a atravessar a rua em frente do Hospital.
A esta altura Nemecsek também estava chorando, com uma tristeza infinita, com toda a amargura de seu coração de soldado raso, e naquele choro febril repetia resmungando, sem parar:
- Escreveram-me o nome todo em minúsculas... coitadinho do meu nome honesto, todo em minúsculas... "

fragmento do romance " Os meninos da rua Paulo", de Ferenc Molnár.

domingo, 4 de outubro de 2009

O FILHO

De quem, de quem o filho
de Sofia?

Do relojoeiro?
Do dentista?
Do primo Augusto?
Do promotor?
Do telegrafista?
Do cabo-comandante
do destacamento?
De um dos praças?
Do padre apóstata?

Quem é o pai, quem é o pai
noturnamente encapuzado
(sequer tem rosto)
do filho anônimo de Sofia?

Nenhum deles visto rondadndo
de Sofia o muro solteiro,
nenhum abrindo de madrugada
a cancela rouca de Sofia.
O pai quem é?

Sofia semilouca de raça ilustre
vai contar quem dormiu
em seu quarto seco de solteirona
e secamente lhe fez o filho?
Vai inventar talvez um pai
que jamais a tenha tocado?

Já se apavoraram os homens bons
com a denúncia?
Ninguém confessa ter conhecido
Sofia em fogo ou violentada,
Sofia pura,
Sofia aberta
ao prazer esperado amargamente?

Ou dormiram todos com Sofia
(o que é mesmo que não dormir),
ninguém tem culpa,
ninguém é o pai?

Pai do menino é a cidade?
A loucura é pai do menino?
O menino nasceu do absurdo
propósito de nascer-se, escolheu
o ventre de Sofia como se escolhesse
vaso sem semente, apenas terra?

Sofia não responde. Ri baixinho,
acaricia o pinto do menino,

CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
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(Um dos melhores??!!! Se ele tivesse escrito só esse poema, só esse - só por esse - já seria o maior e o melhor poeta do mundo! Ele e o Fernando Pessoa.)

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

QUERO, TEREI -
Se não aqui,
Noutro lugar que inda não sei.
Nada perdi.
Tudo serei.

Fernando Pessoa
......................
(para ti, razão de ser...)
Todos os Fernando Pessoa e os Drummond, em outubro.