sábado, 24 de outubro de 2009

APOSTILA


APROVEITAR o tempo!
Mas o que é o tempo, que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linhas...
O trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou superior!
É tão pouco provável ser Mílton ou Virgílio!
Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - nem mais
nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo
que se não vê)...
Pôr as sensações em castelos de cartas, pobre China
dos serões,
e os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil...

Imagens de jogos ou de paciências ou de
passatempos...
Imagens da vida, imagens das vidas,
imagens da Vida.
Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência
desconheça...
Não ter um ato indefinido nem factício...
Não ter um movimento desconforme com
propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...

Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao
canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é
triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco
minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros
minutos?!
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Aproveitar o tempo!...
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou
de ser!
..................................................
Fernando Pessoa
(Ah, esquecer, desmemoriar: que benção, seria, pr'alma!)

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