quarta-feira, 25 de março de 2009

um pequeno barco azul


Uma simples folha (de papel), de um livro ou caderno, é inacreditável o bem que pode fazer, a felicidade, o prazer que pode dar a quem escreve e a quem lê. Isso poucos discutem, ou, talvez, ninguém ouse discutir.
Mas uma folha de papel em branco - não necessariamente branco, pode ser outra cor- poucos sabem, pode se transformar num objeto de encanto para ser visto, tocado, brincado e até lido (mesmo que não tenha uma palavra escrita) por todo aquele que tiver aberto os olhos da alma para lê-lo.
Estes objetos são os origamis que nascem de modo quase natural da dobradura, isto é, da arte de dobrar.

Sem muita arte e com muita vontade, passo a passo, com todas as dobras precisas, fiz hoje um barco de papel azul.
Era um presente: não foi dado. O ganhador do barco preferiu o ônibus.
E o barquinho, este se perdeu pelas ruelas vizinhas ao Mercado.
Tomara que ele sobreviva até amanhã e que alguma criança o encontre, goste dele e o leve para navegar onde ela bem quiser.


para o Paulo.
........................................................................
foto by Renata: lago na Redenção - um bom lugar para navegar com barquinhos de papel azul.
(grata à Professora Cláudia que me ensinou.
E à Alessandra.)

domingo, 22 de março de 2009

Seio

Está redondo
está cheio, meu seio
hoje.
Meu corpo está bonito
Pronto.
Desde de manhã.


maira dilli
(banho)

sábado, 21 de março de 2009

Canção do carcereiro

Aonde vais belo carcereiro
Com essa chave manchada de sangue
Vou soltar aquela que amo
Se ainda for possível
E que tranquei
Ternamente cruelmente
No mais secreto do meu desejo
No mais profundo do meu tormento
Nas mentiras do futuro
Nas bobagens das juras
Quero soltá-la
Quero que seja livre
Até para me esquecer
Até para ir-se embora
Até para voltar
E também para me amar
Ou para amar um outro
Se esse outro lhe agradar
E se ficar um dia sozinho
E ela só em idas
Guardarei apenas
Guardarei sempre
Nas minhas duas mãos côncavas
Até o fim dos dias
A doçura dos seus seios modelados pelo amor.


in POESIA DE TODOS OS TEMPOS - Jacques Prévert (POEMAS}

Leio os poemas de Jacques Prévert como se fossem crônicas.
Tem um quê de crônica (de quotidiano) a poesia desse poeta. Também por isso me agrada tanto.

quarta-feira, 18 de março de 2009

O velho Barreiro


É sabido que as minhas viagens de ônibus e de trem rendem não só dores nas costas como também muitas histórias. Não sei porque cargas d'água as coisas estão se antecipando e o ponto de ônibus deixou de ser só o lugar, desprovido de qualquer graça, onde se espera esse meio de transporte coletivo para ser o ponto de encontro com pessoas, conhecidas ou não, e suas histórias, faladas ou não. Talvez eu esteja, de uns tempos para cá, enxergando melhor.
Hoje, bem cedo, encontrei o velho Barreiro... Não, não se trata da conhecida cachaça! (Aliás, não bebo - só um vinho, tinto seco, no frio e, às vezes, uma cerveja ou outra nos dias mais quentes do verão).
Seu Barreiro, meu vizinho de origem galega - de Pontevedra! - conta respeitável idade e mora faz pouco, bem em frente à minha casa. Descobri, além do nome curioso, que esse simpático senhor é um bom contador de histórias. Ele mal me viu e já na parada começou a puxar conversa. Entramos no ônibus e eu que estou sempre apressada costumo passar a roleta para ficar mais perto da saída.
No entanto, o olhar do velho era um pedido! Sentei-me a seu lado adivinhando uma boa conversa: mais que isso, ganhei uma bela história. Segundo ele, uma das que gosta de contar às netas.
Me contou o velho a história de um inquieto gafanhoto, que não contente com a beleza e fartura do lugar onde vivia, sonhava com uma nuvenzinha do céu.
Tem uma moral essa história, que eu não sei bem qual é (minha memória é falha, esqueço até do que não deveria esquecer). Para falar a verdade, a moral deixa para lá.
Ouvi muita história - de bicho, de assombração, de fadas; contadas por meus pais ou minha avó (que não sabia ler, nem escrever, mas contava histórias como ninguém) - quando pequena. Assim me senti, criança de novo, ouvindo as peripécias do gafanhoto sonhador...
Tal e qual o gafanhoto venço minhas montanhas: não perco a roleta, o trem, o horário do trabalho, a classe. Mas perdi a Hora, e o que era imperdível se perdeu. E muito da Alegria.
Restam uns poucos sonhos: são sonhos e como tal permanecem acalentados no sono.
(Sonho, às vezes, acordada. As quedas são duras - não há colchões, nem de nuvens, no chão.)

segunda-feira, 16 de março de 2009

Sobre um irmão

" Em 1868, no dia 14 de março, às duas horas da madrugada, em consequência da predileção que tem pelas jogadas de mau gosto e também para completar a quantidade de absurdos que tem cometido em diversas épocas, a natureza fez com que eu nascesse. Apesar da importância do acontecimento, não conservo dele nenhuma recordação pessoal; minha avó contou que logo que recebi o espírito humano, dei um grito.
Tenho certeza que foi um grito de indignação e de protesto".

Máximo Górki (nota biográfica, escrita em 1893) - in VASSA GELEZNOVA.

terça-feira, 10 de março de 2009

Flor

Que cheiro bom, de flor, tu tens, me disse um amigo, me fazendo rir para ele.
E sorrir por dentro: "Como tu és cheirosa!" Quantas - mil - vezes tu me dissestes isso?
E como eu gostava: todas mil vezes que ouvi, gostei, não como se fosse a primeira vez , mais, muito mais. Porque sempre era verdadeiro e natural.. E sempre me botava um sorriso na cara. Tão bom: obrigada!

domingo, 8 de março de 2009

A IDADE DA RAZÃO


- " Eu quisera muito que os olhos não me doessem tanto.
- Escute - disse Mathieu - , vou à farmácia comprar um comprimido. Mas estou esperando um telefonema, se me chamarem diga ao garçom que volto já. Por favor.
- Não, não vá - disse secamente. - Agradeço, mas não adiantaria. É o sol.
Calaram-se. " Estou me chateando ", pensou Mathieu com estranho prazer. Um prazer crispado. Ivich alisava a saia com as palmas das mãos, erguendo ligeiramente os dedos, como se fosse tocar piano. Suas mãos estavam sempre avermelhadas, porque ela tinha má circulação. Em geral ela as mantinha erguidas e as agitava de quando em vez para que empalidecessem. Não lhe serviam quase para pegar, eram dois idolozinhos gastos nas pontas dos braços..."
Fragmento do romance "A idade da razão", Jean Paul Sartre.


Esse é um dos meus livros preferidos e um dos melhores presentes que ganhei. Em outubro de 98 escrevi: "Foi um dos melhores livros que li. Tão bom que, quando terminei, e até mesmo agora sinto falta daquelas personagens tão de carne e osso. Principalmente a Ivich."
Escolhi o Sartre, nesse dia 08 de março, porque para mim ele é o autor que melhor conhece a alma feminina; adentra corpo e pensamento ( sabe os mistérios, conhece os segredos). E se não for, é o que melhor expressa. Com maior sensibilidade e perspicácia, como se ele próprio fosse uma mulher.
Foto by maira: escultura no Museu de Arte Moderna, Barcelona.

sábado, 7 de março de 2009

Um filho.


Essas idas e vindas no transporte coletivo rendem crônicas, poesias, ou apenas pensamentos, que não me deixam só a viagem inteira. Isso quando não estou "ligada" na música, a única boa serventia do meu celular.
Ainda na parada do ônibus, fiquei impressionada com uma criancinha de uns dois anos, dois anos e meio. Tinha os olhos amendoados e com algo que lembrava estrabismo. Não conseguia fixar o olhar, nem o pescocinho que girava incessantemente. Às vezes, parecendo não aguentar, ela deixava pender a pequena cabeça sobre o ombro da mãe. Pobre criaturinha!
Entrei na condução com a imagem da criança dentro de mim e pensei em como seria ter um filho adotivo. Eu seria uma boa mãe e o pai que eu penso, um felizardo. Esperaríamos um bebe recém-nascido: ele seria gordinho (digo ele, porque já sou mãe de tres filhas), com aquela dobras nas pernas e os bracinhos a se mexer, contentes. Daria o seio a ele mesmo que não tivesse uma gota de leite, não nos privaria desse prazer. E a mamadeira complementaria.
Se chamaria, quem sabe, Francisco, Pedro, João ou Lorenzo. Ou, me passou pela cabeça um nome não muito comum, mas nem por isso pomposo; um nome simples, de um guri bonito, que eu gostei um dia: Danilo. (Também, lembrei agora, é o nome de um amigo muito querido que virou anjo há pouco tempo.)
O pai desse meu filho, ensinaria como ninguém, muito cedo , o filho a ler e a escrever, a gostar de livros e de música e de um certo time de futebol. Eu ensinaria isto e mais algumas coisas minhas: como o gosto por viajar para qualquer lugar, a gostar do mar, do céu e das estrelas. Das plantas, das pedra, de fazer pães. E a ser doce, ser bom e feliz.

O amor anda sobrando aqui em mim. Mas, isso só, não basta. Preciso trabalhar menos e mais perto.
foto by maira: de um calendário num albergue em Barcelona, Espanha.

terça-feira, 3 de março de 2009

Formigueiro

É o nome de um bolo que eu não gosto muito. Depois de desligada a batedeira é adicionado um punhado generoso de chocolate granulado à massa. Fica interessante: um bolo amarelo-claro crivado de pontinhos escuros minúsculos como formigas; as crianças costumam gostar. Eu, que há muito tempo deixei de ser criança, prefiro outros: de maçã, laranja, de cerveja, até.
Formigueiro de verdade tinha aos montes - e são montes mesmo!, nos campos próximos a casa da minha primeira (e única) infância. Tinhamos, eu meu irmão e primos, cuidado suficiente para não topar, o que equivale a dizer meter o pé, num montículo destes, feitos só de formigas. Ardência e coceira são uma espécie de premio às avessas para o infeliz desavisado que destrói um. E como se não bastasse uns calafrios, e uma impressão que mesmo depois de mortas elas continuam se multiplicando e picando a torto e a direito!
É o que está acontecendo comigo agora. Ontem a mochila que uso para o trabalho, onde carrego livros e outros objetos, estava tomada de formigas miudas, como se alguém tivesse esquecido ali algum doce muito doce. No ônibus indo para o centro é que fui perceber. Tive ganas de tirar o vestido ali mesmo, porque as formigas sem nenhum pudor subiam pelas minhas pernas provocando, além do desconforto um certo constrangimento. Eu não parava de me mexer um minuto sequer com as danadas subindo.
Não sou alérgica, mas mesmo assim fiquei com marcas, que os antigos chamam de enzamboação, uns caroços avermelhados pelo corpo todo; tantas eram as formigas.
O doce bem doce era um pé-de-moleque.

segunda-feira, 2 de março de 2009

COMIDA


Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer

Bebida é água
Comida é pasto
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer
A gente quer comer e quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer para aliviar a dor
A gente não quer só dinheiro
A gente quer dinheiro e felicidade
A gente não quer só dinheiro
A gente quer inteiro e não pela metade


música de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Brito. Jesus não tem dentes no país
dos banguelas. (Ariola , 1987)
foto by maira: um convite para o teatro no metro em Madri.
De que a Silvia tem fome não sei. Eu tenho, de ver, de conhecer, de brincar mais
- não levar nada tão a sério, de ser feliz de novo.