domingo, 28 de junho de 2009

OBERON

O nome não é a pessoa, mas minha vida seria completamente diferente se eu me chamasse, por exemplo, Oberon. Oberon Frenegaz de Hoz e Malgavia. Para começar, jamais teria dificuldade em reservar mesa em restaurantes.
- Es para Oberon Frenegaz de Hoz e Malgavia de Soler e Pantajas.
Uma pausa e o arremate:
- Tercero.
- Sim senhor. Uma mesa para quantos?
- Dez. Estarei sozinho.
Sim, porque, com um nome assim, mesmo sozinho você é um cortejo.
O nome que escolhemos, ao contrário do nome que nos dão, revela a idéia que fazemos de nós mesmos e os projetos secretos que sempre tivemos para nossas vidas e o nome dado impedia. Quem escolhe se chamar Oberon é porque tem ambições de Oberon. Planos de Oberon. Que, obviamente, boas coisas não podem ser. Minha mulher não entenderia.
- Mas Luis Fernando...
- Oberon.
- Mas Oberon... Esse bigode. Essa piteira de madrepérola. Você nem fumava.
- Cajate, mujer.
- E esse mau espanhol...
- No tengo que te dar explicaciones. Mis pantufas!

Luis Fernando Verissimo
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(Ri, às gargalhadas, quando li essa crônica no jornal de domingo.
O Verissimo é ótimo! E ele tem razão: talvez se o meu nome fosse outro, eu fosse mais dura.
Queria que meu nome fosse difícil e duro; e que eu fosse como o nome.)

sábado, 27 de junho de 2009

Babete

Baixou a Babete em mim: digo isso quando amanheço com o espírito de cozinhar, ou seja, afim de preparar mil comidas boas num dia só, como hoje.
Comidas que, modéstia à parte, eu sei fazer muito bem: uma torta de cebolas ou de frango (a preferida do Paulo); pães - os mais diversos, doces ou salgados, recheados ou não- ; a melhor ambrosia e o melhor arroz-doce do mundo; sopas; pizzas - com bordas e tudo! - e uns patês de grão-de-bico ou beringela; um simples arroz feito com alho e óleo em panela de ferro e batatas fritas saborosas.
Ou um pesto feito à mão, com manjericão que eu mesma planto em vasinhos esparramados pelo quintal.
(Num sábado desses, fui com o Felipe - outro amante da cozinha! - à Feira Ecológica da Redenção; compramos frutas, alguns legumes e temperos - e comemos bergamotas ao sol. Comprei, também, inhame (um tubérculo feio e sem graça) e fiz com ele, um pão tão dourado e brilhante, que parecia papel mache.)
Muitas vezes na vida me senti um pouco Babete, seduzindo todos com a minha comida. Mas diferente da Babete (do filme, e do livro de Karen Blixen), é surpreendente para mim a reação das pessoas frente à algumas comidas que preparo.
(Há pouco tempo o César me disse, com um pedaço de pizza à frente, que não existia lugar no mundo igual à minha cozinha. Tive que acreditar; ele recém havia chegado da Sardenha!)
Talvez mais do que a própria comida que é realmente boa, o ambiente à mesa, nessa cozinha tão simples, foi, inúmeras vezes uma verdadeira Festa de Babete.
Hoje, por exemplo, o almoço era "spaghetti al pesto" e sagú de vinho tinto com creme de baunilha: "un vero pranzo" à italiana. O molho pesto foi feito com manjericão fresco do meu quintal, isso não é novidade, mas as nozes - morram de inveja! - também são novissímas, direto de uma nogueira do alto Teresópolis: presente de um amigo, o Fernando, que mora por lá.
À noite foi a vez da cozinha alemã: sopa de batatas, de entrada, e torta de cebolas como único e mais do que suficiente, prato principal. E uma cerveja escura para completar.

Sinto, no entanto, falta de algumas pessoas: Babete não é mais a mesma.
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foto: bolo de laranja e ambrosia, madri 2008.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

HISTÓRIAS

Minha namorada, cujos olhos têm propriedade para ver o que é do mundo (flor, estrela, muros), também sabe - e muito bem - contar histórias. E contando, ela ensina.
Ontem, à hora do almoço, aprendi que, às vezes, ignorar é melhor que saber, e que, ao contrário do ditado, há bens que vêm para o mal.
Sua avó que teve quinze filhos, enquanto pariu, nunca visitara um consultório médico. Um tio-avô analfabeto que ela tinha como pai era quem trazia à luz as pequenos Mancini.
Foi contrariando as estatísticas que seus rebentos nasceram e cresceram saudáveis. E assim ela também ia se mantendo.
Um dia, o útero tão solícito cansou. Aproveitando-se desse descuido, um pequeno tumor começou a trabalhar no seu ardiloso intento. Primeiro, uma dorzinha surgiu aqui, depois ali, até que a matrona, preocupada, decidiu ir consultar.
Dona Santa Eduvirgens, cujo nome nada tinha a ver com a quantidade de filhos que tivera, foi, pela primeira vez, à ginecologista.
A doutora, formada na Capital e especializada no exterior, após alguns exames e da melhor forma possível, deu-lhe a notícia:
- A senhora tem um câncer em estágio avançado, Dona Santa - falou com voz embargada. Depois, continuou: - Sinto muito! Não há o que fazer.
Em casa, minha avó viveu mais dois meses - contou-me Bárbara - e, de acordo com ela mesma, tudo porque tinha ido ao médico.

Paulo Cezar Dias Rodriguez - in Premiados 2001 (Concurso Literário Felippe D'Oliveira)

domingo, 21 de junho de 2009

Tiene el leopardo un abrigo
En su monte seco e pardo:
Yo tengo más que el leopardo,
Porque tengo un buen amigo.

Duerme, como en un juguete,
La mushma en su cojinete
De arce del Japón: yo digo:
"No hay cojín como un amigo."

Tiene el conde su abolengo:
Tiene la aurora el mendigo:
Tiene ala el ave: Iyo tengo
Allá en México un amigo!

Tiene el señor presidente
Un jardín con una fuente,
Y un tesoro en oro y trigo:
Tengo más, tengo un amigo.


José Martí, in Versos Sencillos
(... posso dizer que tenho bem mais que o leopardo, porque tenho, não só um amigo, tenho esses dois: Fernando e Felipe, que valem por um tesouro.)
Gracias, Fernando, pelas inesperados presentes de Cuba! E pelo teu carinho bem brasileiro.
Aos dois: pelas risadas, os vinhos, a comida, a música, os charutos e amizade.

sábado, 20 de junho de 2009

A HORA

Não é boa a Hora
em que tua Falta é sentida
minuto a minuto.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

the final cut

"tell me true tell me why was jesus crucified... "

Ouvi o "the final cut". Duas, três vezes.
Esse CD, quando ganhei, não conseguia parar de ouvi-lo. A música que eu sabia existir - não sabia aonde - estava ali! Para mim: como um amor que a gente sonha.

Depois li uma crônica, cujo nome, quase simplório: "Tatá, o bom", nem de longe levaria o leitor menos atento a pensar que se tratasse de um bom texto, se não fosse do Drummond. (Tatá era um homem de grande coração, que sofria ao perceber que a maldade existe.)
Por um descuido de Deus, existe.
E existe o Drummond e o Pink Floyd...
E o melhor disco do Pink Floyd (há treze anos eu diria o melhor do mundo): the final cut!

quarta-feira, 17 de junho de 2009

cheiros de todo ano


na noite úmida e fria
se misturam pela minha casa
os cheiros da lenha
ardendo na lareira
e de figos verdes,
apurando, em calda,
no fogão.


(... digo, de todo ano, os cheiros, porque os figos
só se mantiveram verdes, congelados; próprios assim para a feitura do doce.)
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foto: minha cozinha.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

UM DIA, UM AMOR

JOÃO BRANDÃO pergunta, propõe e decreta:
Se há o Dia dos Namorados, por que não haver o Dia dos Amorosos, o Dia dos Amadores, o Dia dos Amantes? Com todo o fogo desta última palavra, que circula entre o carnal e o sublime?
E o Dia dos Amantes exemplares e o dia dos Amantes Platônicos, que também são exemplares à sua maneira, e dizem até que mais?
Por que não instituir, ó psicólogos, ó sociólogos, ó lojistas e publicitários, o Dia do Amor?
O Dia de Fazê-lo, o Dia de Agradecer-lhe, o de Meditá-lo em tudo que encerra de mistério e grandeza, o Dia de Amá-lo? Pois o Amor se desperdiça ou é incompreendido até por aqueles que amam e não sabem, pobrezinhos, como é essencial amar o Amor.
E mais o Dia do Amor Tranquilo, tão raro e vestido de linho alvo, o Dia do Amor Violento, o Dia do Amor Que Não Ousava Dizer o Seu Nome Mas Agora Ousa, na arrebentação geral do século?
Amor Complicado pede o seu Dia, não para tornar-se pedestre, mas para requintar em sua complicação cheia de vôos fora do horário e da visibilidade. Amor à Primeira Vista, o fulminante, bem que gostaria de ter o seu, cortado de relâmpagos. E há motivos de sobra para se estabelecer o Dia do Amor ao Próximo, e o Próximo somos nós, quando nos esquecemos de nós mesmos, abjurando o enfezadíssimo Amor-Próprio.
Depressa, amigos criadores de Dias, criai o do Amor Livre, entendido como tal o que desata as correntes do interesse imediato, da discriminação racial e econômica, ri das divisões políticas, das crenças separatórias, e planta o seu estandarte no cimo da cordilheira mais alta. Livre até no impulso egoístico da correspondência geométrica. Amor que nem a si mesmo se escraviza, na total doação que é converter-se no alvo, pois lá diz o que sabe: "Transforma-se o amador na coisa amada."
Haja também um Dia para o Amor Não Correspondido, em que ele se console e crie alento para perseverar, se esta é a sua condição fatal, melhor direi, a sua graça. Pois todo amor tem o seu ponto de luz, que às vezes se confunde com a sombra.
O Amor Impossível, exatamente por sua impossibilidade, merece a compensação de um Dia. Concederemos outro ao Amor Perfeito, que não precisa de mais, mergulhado que está na eternidade, a mover os sóis, independentemente da astrofísica. Ao Amor Imperfeito, síntese muito humana de tantos, retrato mal copiado do modelo divino, igualmente, se consagre um Dia generoso.
Amor à Glória não carece ter Dia, nem Amor ao Dinheiro e seu primo (ou irmão) Amor ao Poder. Eles se satisfazem, o primeiro com uma bolha de sabão, os outros dois com a mesa posta. Mas ao Amor faminto e sem talher, e ao que nenhuma iguaria lhe satisfaz, porque sua fome vai além dos alimentos e é a fome em si, a ansiosa procura do que não existe nem pode existir: um Dia para cada um.
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Carlos Drummond de Andrade - in O Poder Ultrajovem
(... eu, tinha um - feito de luz - que movia céus, terra, sóis: hoje, anda - apagado - irreconhecível, pelas ruas da cidade onde nasceu.)

domingo, 14 de junho de 2009

madrugada ainda

com todo poder, toda graça
e sensualidade
De Jandira
Comecei
a ser Geni.

por um vinho, por um beijo
pela Alegria.
Bendita Geni.

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(... àquele que aqueceu, esta noite,
o meu lado na cama)

madrugada

bebo um vinho chileno
escuto a banda Bardo
tenho o maior amor do mundo
(e um fogo na lareira)
o que mais posso querer

sábado, 13 de junho de 2009

Jandira

O mundo começava nos seios de Jandira.
Depois surgiram outras peças da criação:
Surgiram os cabelos para cobrir o corpo,
(Às vezes o braço esquerdo desaparecia no caos).
E surgiram os olhos para vigiar o resto do corpo.
E surgiram sereias da garganta de Jandira:
O ar inteirinho ficou rodeado de sons
Mais palpáveis do que pássaros.
E as antenas das mãos de Jandira
Captavam objetos animados, inanimados,
Dominavam a rosa, o peixe, a máquina.
E os mortos acordavam nos caminhos visíveis do ar
Quando Jandira penteava a cabeleira...
Depois o mundo desvendou-se completamente,
Foi-se levantando, armado de anúncios luminosos.
E Jandira apareceu inteiriça,
Da cabeça aos pés.
Todas as partes do corpo tinham importância.
E a moça apareceu com o cortejo do seu pai,
De sua mãe, de seus irmãos.
Eles é que obedecem aos sinais de Jandira
Crescendo na vida em graça, beleza, violência.
Os namorados passavam, cheiravam os seios de Jandira
E eram precipitados nas delícias do inferno.
Eles jogavam por causa de Jandira.
Deixavam noivas, esposas, mães
Por causa de Jandira.
E Jandira não tinha pedido coisa alguma.
E vieram retratos no jornal
E apareceram cadáveres boiando por causa de Jandira.
Certos namorados viviam e morriam
Por causa de um detalhe da boca de Jandira.
Um deles suicidou-se por causa da boca de Jandira.
Outro, por causa de uma pinta na face esquerda de Jandira.
E seus cabelos cresciam furiosamente com a força das máquinas;
Não caía nem um fio,
Nem ela os aparava.
E sua boca era um disco vermelho
Tal qual um sol mirim.
Em roda do cheiro de Jandira
A família andava tonta.
As visitas tropeçavam nas conversações
Por causa de Jandira.
E um padre na missa
Esqueceu de fazer o sinal da cruz por causa de Jandira.
E Jandira se casou.
E seu corpo inaugurou uma vida nova,
Apareceram ritmos que estavam de reserva,
Combinações de movimento entre as ancas e os seios.
À sombra do seu corpo nasceram quatro meninas que repetem
As formas e os sestros de Jandira desde o princípio do tempo.
E o marido de Jandira
Morreu na epidemia da gripe espanhola.
E Jandira cobriu a sepultura com os cabelos dela.
Desde o terceiro dia o marido
Fez um grande esforço para ressuscitar:
Não se conforma, no quarto escuro onde está,
Que Jandira viva sozinha,
Que os seios, a cabeleira dela transtornem a cidade
E que ele fique ali à toa.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

"Ode a Apolo"


"Estávamos a discutir a sobrestimação da personalidade entre amantes e ela pensava que fôra Vitor Hugo quem dissera que o amor é a maior coisa do mundo, porque faz de um faxineiro de mercearia um anjo ou um deus.Ela continuou; - Só temos uma fé cega na humanidade quando estamos apaixonados; então tudo é perfeito, tudo é belo... tudo é tão poèticamente irreal. Mesmo assim, é uma experiência maravilhosa; vale a pena tê-la, apesar das terríveis desilusões que geralmente se lhe seguem. Põem-nos ao nível dos deuses e incita-nos a toda espécie de atividades artísticas. Tornamo-nos verdadeiros poetas: não só memorizamos e recitamos poesias mas, muitas vêzes, nós próprios nos tornamos apolos. - Depois, citou os versos acima indicados."

Sigmund Freud - in Psicopatologia da Vida Cotidiana
(fragmento de conversa entre Freud e uma jovem professora; a propósito de se pensar que a pessoa amada é um deus)

quinta-feira, 11 de junho de 2009


crosta de poeira
inscrito a dedo
o nome da saudade

haikai - Cezar Dias
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(...era uma flor,
regada de amor
Sou Saudade.)

Maira

quarta-feira, 10 de junho de 2009

Desgosto

dei para não gostar de feriado,
nem de fim de semana.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

OUT


finalmente estou me tornando árida,
por conta do rivotril.

domingo, 7 de junho de 2009

TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que
ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada
constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa,
desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos
seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos
brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela
estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubese a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este
lado da rua
A fileira de carruagem de um comboio, e uma
partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de
ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e
esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real
por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real
por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse
nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei
de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não
pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios
como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas
futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômioshá doidos malucos com
tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo
ou menos certo?
Não, não em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos
sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos
de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo,
ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais
humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant
escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a
porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.

Fernando Pessoa (TABACARIA)

sábado, 6 de junho de 2009

O jeito que tu me amou fez com que eu não conseguisse - e não consiga - entender o teu não amor.
E a ausência de ti.
Tu fez eu gostar de mim. E criou, em mim, uma dependência de ti: da tua presença.
Me sinto, agora, abandonada à minha própria sorte.
(Que por motivos tantos, inclusive e principalmente a excessiva sensibilidade à tua ausência, não parece promissora.)

Posso, agora, te ligar a qualquer hora?
Posso te pedir, por exemplo, para pagar a minha conta telefônica, que veio enorme, por conta das nossas intermináveis conversas diárias, das tuas dores, e das minhas?
Posso me queixar do dedo do pé que dói, quebrado, por que eu pensava em ti, e caí?
Posso te ligar de madrugada, por que o frio e a solidão (e as dores disso), me assaltam todas as noites me tirando o sono?
Posso te ligar agora que estou à mesa do café e não consigo tomá-lo, por que tem um nó, que me engasga, na garganta?
Posso te pedir para que venhas e me dê, docemente, o café da manhã?

Posso abrir um livro, posso ler, escrever, te contar uma história, ouvir uma música (Morrisey! David Bowie!), ver um filme ( As sombras de Goia!); comer uma lasanha, ou uma pizza, ou uma torta de frango, ou arroz, feijão e bife; catar uns gravetos para a lareira, ir à Floripa e tomar banho de mar; posso me olhar no espelho, cortar o cabelo, posso por um perfume, posso fazer amor, posso dormir nua numa noite gelada, posso deixar alguém me abraçar; posso sentir o sol, o frio, o vento, ver o céu e as estrelas e a lua; posso olhar para aquele apartamento, de quarto e sala, para aquela casinha de madeira: posso viver, enfim, sem me lembrar de ti?