Vai para uns quinze anos escrevi uma crônica sobre a trinca do Curvelo, Curvelo, a Rua do Curvelo, em Santa Teresa, hoje Rua Dias de Barros. Expliquei então que trinca era na linguagem da molecada a baderna dos meninos do bairro e passei em revista alguns dos tipos mais curiosos da malta do Curvelo - Lenine, o menor de todos que, quando batia à minha janela para pedir um níquel e eu não dava, ameaçava esbodegar a minha porta; Antenor, que eu chamava o antena Antenor; Ivã, que apelidei o Terrível, os irmãos Ernâni e Álvaro, os irmãos Piru Maluco, Arlindo e Ademar, os irmãos Culó e Orlando, o Encarnadinho, Juca Mulato e outros. Essa miuçalha vivia batendo bola em frente das minhas janelas, porque só ali, naquele trecho da rua, se praticava a verdadeira democracia, com absoluta liberdade de espatifar as vidraças nas vicissitudes do futebol de calçada... isso enquanto não foi meu vizinho fronteiro o austero Celso Vieira, então secretário da Corte de Apelação. De tempos a tempos a trinca do Curvelo travava lutas homéricas com a trinca do Hermenegildo de Barros, gentinha de morro abaixo, que a outra olhava como maior desprezo.
Escrevendo sobre a velha trinca, arrisquei um prognóstico otimista que deu inteiramente certo. "Os piores malandros da terra", disse: " O microcosmo da política. Salvo o homicídio com premeditação, são capazes de tudo. Mentir é com eles. Contar vantagens, nem se fala.. Valentes até à hora de fugir. A impressão que se tem é que ficando homens vão todos dar em assasssinos, jogadores, passadores de notas falsas... Pois nada disso. Acabam lutando pela vida, só que com saudade do único tempo em que foram verdadeiramente felizes... "
Tal e qual. Mudei-me do Curvelo para a Lapa. Durante alguns anos tive notícias da trinca por Ernâni, que de quinze em quinze dias ia encerar meu apartamento. Mas Ernâni entisicou e morreu. Quando estava nas últimas, mandou-me um recado, pedindo-me que o fosse ver. Fui. Ernâni sofria sem nenhum sentimentalismo. Em certo momento a irmãzinha, um anjo louro, não soube acudir-lhe a tempo com a escarradeira. "Dá um bofetão nessa burra!" gritou o quase moribundo para o irmão Álvaro. A trinca era assim. Dois dias depois morreu.
Perdi o contacto com a trinca. Hoje, passando na Avenida Rio Branco, vi o Álvaro. Álvaro vende bilhetes de loteria e joga futebol. Está com vinte e um anos, não quer saber de casamento. Foi ele que me deu notícias dos companheiros de dez anos atrás.
A única tristeza é a loucura de Lenine (já no tempo do Curvelo sofria de ataques epiléticos).Os outros, porém, prosperaram. Encarnadinho é alfaiate na Lapa; o pretinho Malaca, ajudante de alfaiate; Culó, aviador; Orlando e Rafael, cadetes do exército; Piru Maluco e Arlindo, gráficos; Zeca Mulato foi sapateiro, mas estudou e hoje é datilógrafo; Bacurau é investigador; Ademar, jogador de boxe e de luta livre... Nenhum se perdeu. Nenhum tem nota de culpa na polícia.
Tenho saudades desses meninos. Prestavam-me de vez em quando um servicinho, ao que eu procurava corresponder com fornecer-lhes linha e papel fino para os papagaios. Uma vez por outra um susto - pá!- o impacto da bola "que saia fora pela linha das arquibancadas". Duas vezes, a minha vidraça partida. Raiva, raiva de verdade só me deram uma vez, em que saí de fraque para um casamento. Não vos conto nada: a trinca suspendeu a partida de futebol e começou a gritar: "Seu Manuel Bandeira de fraque! Seu Manuel Bandeira de fraque!" Também foi a última vez que vesti fraque na minha vida. (Flauta de Papel)
Seleta em prosa e verso - Manuel Bandeira
do acervo de Vitor Ávila.
Um comentário:
nada como uma boa história bem escrita!
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