domingo, 11 de dezembro de 2011

A BARCAÇA

Ele embarcou numa mulher
(Um dia, foi numa cidade:
a vida cigana de então
pedia porto onde ancorasse.

Em Sevilha matriculou-se:
se nele é meteco, ninguém
habitou mais fundo esse porto
nem o soube do quê ao quem).

Hoje embarcou numa mulher.
Recifense, ele a chama de barcaça,
que é o barco mais feminino,
é mulher feita barco e casa.

Mas nunca fez por anular
o registro de barca antiga;
na barcaça pernambucana
na proa se lê: "Sevilha".

João Cabral de Melo Neto


sábado, 3 de dezembro de 2011

A URBANIZAÇÃO DO REGAÇO

Os bairros mais antigos de Sevilha
criaram uma urbanização do regaço
para quem, em meio a qualquer praça,
sente o olho de alguém a espioná-lo,
para quem sente nu no meio da sala
e se veste com os cantos retirados.
Com ruas feitas com pedaços de rua,
se agregando mal, por mal colados,
com ruas feitas apenas com esquinas
e por onde o caminhar fia quadrado,
eles têm abrigos e íntimos de corpo
nos recantos em desvão e esconsados.

Com ruas medindo corredores de casa,
onde um balcão toca o do outro lado,
com ruas arruelando mais, em becos,
ou alargando, mas em mínimos largos,
os bairros mais antigos de Sevilha
criam o gosto pelo regaço urbanizado.
Eles têm o aconchego que a um corpo
dá estar no outro, interno ou aninhado,
para quem torce a avenida devassada
e enfia o embainhamento de um atalho,
para quem quer, quando fora de casa,
seus dentros e resguardos de quarto.


João Cabral de Melo Neto

(Para o Paulo, aquele que me dá o aconchego (o ninho)...
Vamos à Sevilha, meu amor?)

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

sobre o ato de pensar

tão pequenino
- dois anos, quando muito -
e já andava solto pela calçada.

A mãe ia ao lado
com outro menor ainda no colo.
- Caminha guri!
Quem sabe tu pensa menos e anda de uma vez!

Cabeça baixa o menino,
cujo nome não lembro, apertou o passinho.

maira dilli

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Prole

Com significado que há muito conheço,
descobri hoje a palavra prolífico

Minha avó, meu avô
eram prolíficos
tiveram inúmeros filhos
Também eu tinha essa coisa de ser prolífica
mas tive só três
queria ter tido mais alguns

Queria ser prolífica e fazer comida para um batalhão
como minha avó fazia
E quem sabe no final de cada manhã, almoço pronto,
gritar à porta da cozinha: São onze e meia!


Maira Dilli

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

à luz do dia

vi a Lili
fazia tempo que não a via

uma Lili feliz
no corredor do ônibus

gorda e amada
a Lili bem beijada
pelo seu amor

vi ontem - os amantes -
os dois, um?


maira dilli

terça-feira, 22 de novembro de 2011

rio

O rio hoje
está mais bonito do que se diz:

cheio e crespo
do vento, cor de prata
do céu

Com os peixes
de prata também

lindos poluídos
e inocentes
sob as águas

O rio hoje



maira dilli

domingo, 13 de novembro de 2011

TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
a manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


JOÃO CABRAL DE MELO NETO
(A Renata chegou de Floripa... me lembro dela cantando com os galos,
tecendo manhãs em Ponta das Canas, há alguns anos.)

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem de ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.


Adélia Prado

(Tudo que eu gosto ela escreve... Acabei de ler outro poema lindo, que fala das sempre-vivas, que eu adoro desde pequena.)

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

CHORINHO DOCE

Eu já tive e perdi
uma casa,
um jardim,
uma soleira,
uma porta,
um caixão de janela com um perfil.
Eu sabia uma modinha e não sei mais.
Quando a vida dá folga, pego a querer
a soleira,
o portal,
o jardim mais a casa,
o caixão de janela e aquele rosto de banda.
Tudo impossível,
tudo de outro dono,
tudo de tempo e vento.
Então me dá choro, horas e horas,
o coração amolecido como um figo na calda.


Adélia Prado

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

QUE PERDI, que perdemos
quando Nazim caiu como uma torre,
como uma torre azul que desmorona?


Às vezes me parece
que o sol se foi com ele porque era o dia,
era Nazim um grande dia dourado,
e cumpriu seu dever de amanhecer
apesar de cadeias e castigos:
Adeus, resplandecente companheiro!


Savich suavíssimo entre São Basílio
e as vivendas do Aeroporto,
ou no bairro de Arbat, ainda misterioso,
trasvasando meu chileno vinho
para os tambores de sua linguagem.
Savich, contigo perdeu-se a abelha
de ouro,
que ali fundou o mel de minha colméia!
Meu suave amigo, camarada puro!


PABLO NERUDA - ELEGIA
(Feira do Livro 2011, com o Paulo)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
É o hábito de sofrer que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...

Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!


Carlos Drummond de Andrade - SENTIMENTO DO MUNDO

domingo, 23 de outubro de 2011

Meu Deus. Um grande elogio do supervisor escolar de Staten Island. Devo dançar pelo corredor ou abrir os braços e sair voando? Será que o mundo vai protestar se eu cantar?

Eu canto. No dia seguinte, digo à turma que conheço uma música de que ele vão gostar, com uma letra que era para dar um nó na língua. Cantamos verso após verso e eles riram enquanto tentavam desembaraçar a língua do rolo de palavras e não era bacana ver aquele professor ali cantando? Puxa, a escola devia ser assim todo dia, a gente escrevendo bilhetes de desculpa e os professores começando a cantar de repente sem nenhum motivo.

O motivo era que me dei conta de que na História da Humanidade havia material suficiente para escrever milhões de bilhetes de desculpa. Mais cedo ou mais tarde, todo mundo precisa de uma desculpa. E também se a gente cantou hoje podia cantar amanhã e por que não? Não é preciso uma desculpa para cantar.



fragmento do livro "Ei, professor". Frank Mc Court.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

ideia insana para um velório

Talking Heads tocando a todo vapor. Sou capaz de ressuscitar!

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

texto para a primeira professora

Tenho tido dificuldades em escrever em forma de prosa: o meu pensamento anda sempre em voltas. É mais fácil um poema... Mas que poesia há em uma menina de cinco anos aprender a ler com a própria mãe?
Toda poesia do mundo!
Que não vai virar poema. É só uma história a propósito de um Pós, pago por uma prefeitura qualquer para que seus professores sejam melhores professores. Tais cursos, porém, não ensinam a sensibilidade. Ela está na gente.
Numa noite dessas, duas semanas atrás, uma palestrante paulista falava sobre como são importantes os professores que alfabetizam. E perguntou quantos ali eram alfabetizadores. Várias levantaram as mãos. Digo várias porque eram mulheres, todas. Parece que só as mulheres sabem ensinar a ler.
Me veio à memória, então, o momento exato em que li a minha primeira palavra, escrita numa caixa onde se guardavam barras de sabão.
Eu disse bem alto para minha mãe: sei o que está escrito lá - apontando a caixa de madeira -, é PELOTAS!
Ela, a minha primeira professora, exultou.
E, dali por diante, eu lia tudo que via pela frente, árvore bicho céu pedra livro. E as casas e os quintais.
Preferia isso a qualquer brinquedo de criança.
Assim cresci. Bem mais tarde descobri que era míope.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

eu

Eu: fácil

Fácil fácil

Fácil

para, quase,

qualquer um



Mas difícil

difícil difícil

Dificílima

para mim.



maira dilli

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

AÍ ESTÁ O MAR?

AÍ ESTÁ O MAR? Muito bem, que passe.
Dá-me o grande sino, o de fenda verde.
Não esse não é, o outro, o que tem
na boca de bronze uma ruptura,
e agora, nada mais, quero estar só
com o mar principal e o sino.
Não quero falar por um largo tempo,
silêncio, quero apender ainda,
quero saber se existo.



PABLO NERUDA

sexta-feira, 1 de julho de 2011

o meu dia

estou feliz nesse meu dia com o Paulo ao meu lado
as minhas filhas e a minha mãe - os meus irmãos
e todos os amigos - o pequeno Akin
o Led
o frio que eu adoro
e o coração sempre aquecido - o que é muito bom

estou feliz com a festa que daqui a pouco vai rolar

estou feliz com a vida
que está enfim do jeito que devia estar.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

O MEU AMOR

O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
E que me deixa louca
Quando me beija a boca
A minha pele fica toda arrepiada
E me beija com calma e fundo
Até minh'alma se sentir beijada, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
Que rouba os meus sentidos
Viola os meus ouvidos
Com tantos segredos lindos e indecentes
Depois brinca comigo
Ri do meu umbigo
E me crava os dentes, ai
Eu sou sua menina ,viu?
Ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me deixar maluca
Quando me roça a nuca
E quase me machuca com a barba mal feita
E de pousar as coxas entre as minhas coxas
Quando ele se deita, ai
O meu amor
Tem um jeito manso que é só seu
De me fazer rodeios
De me beijar os seios
Me beijar o ventre
E me deixar em brasa
Desfruta do meu corpo
Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai
Eu sou sua menina, viu?
Ele é o meu rapaz
Meu corpo é testemunha
Do bem que ele me faz


chico buarque
- uma das mais lindas canções de amor que já vi -



terça-feira, 5 de abril de 2011

atraso

uma hora depois
e já estava escuro
Corri a acender as luzes todas da casa
na esperança
de ver ainda o colorido dos hibiscos

Mas eles já tinham se recolhido
e murchos continuaram
à luz artificial

Cabisbaixa tomei café,
comi bolo.


maira dilli

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Vinte e um. Noite. Segunda-feira.
A silhueta da cidade na neblina.
Algum desocupado inventou
essa história de que há amor no mundo.

E por preguiça ou por tédio,
todos acreditaram nele e assim viveram:
esperando encontros, temendo rupturas
e cantando canções de amor.

Mas a outros será revelado o segredo
e sobre estes cairá o silêncio...
Eu tropecei nele casualmente e, desde então,
sinto-me como se estivesse doente.

1917
Petesburgo - Anna Akhmátova


quarta-feira, 30 de março de 2011

Pássaros


A casa, construção de palha e ramagem, é muito maior que seu habitante.
Mas erguer a casa, no meio do mato espinhoso, leva apenas um par de semanas. A arte, por sua vez, exige muito tempo de trabalho.
Não existem duas casas iguais. Cada um pinta sua casa como quer, com pintura feita de sementes amassadas, e cada um a decora à sua maneira.Os arredores são cercados com tesouros arrancados da montanha ou do lixo de alguma cidade vizinha: as pedrinhas, as flores, os cascos dos caracóis, as ervas e os musgos se colocam buscando harmonia; e as tampas de garrafas de cerveja e os pedacinhos de vidros coloridos, de preferência azuis, desenham anéis ou leques no chão. As coisas vão mudando mil vezes de lugar, até encontrar o melhor para receber a luz de cada dia.
Não é à toa que esses pássaros são chamados de caseirinhos. Eles são os arquitetos mais alegres de todas as ilhas da Oceania.
Quando conclui a criação de sua casa e de seu jardim, cada pássaro espera. Espera, cantando, que passem as pássaras. E que uma delas detenha seu voo e veja sua obra. E o escolha.

in Bocas do Tempo, Eduardo Galeano

(para o Paulo: a tatoo.)

domingo, 27 de março de 2011

angústia

saudade da filha que mora longe
de outra, não tão longe
e da que mora perto.
saudade, até, de quem está ao meu lado.

acho que é a chuva,
ou o verão que passou.

domingo, 20 de março de 2011

Um pequeno rei

Foi assim que eu vi o Akin: um reizinho!
De sorriso meigo e olhar profundo, cabelos crespos ornando a cabecinha bonita, reina soberano junto aos pais, avó, tio.
Contei uns segredos para ele, no meu colo, e ele, como se entendesse tudo, cresceu o sorriso.
(Oxalá que esse segredo, sonho e desejo se realize; e não demore. )

terça-feira, 8 de março de 2011

VER E OUVIR, SEM BRINCAR

" Ninguém pergunta mais:
- Você vai brincar no carnaval?
Brincar, irmão, quem pode brincar
se perdida foi a idéia de brinquedo?
Alguns ainda perguntam:
- Como é? Vai pular no carnaval?..."


carlos drummond de andrade
(fragmento)

À NOITE

A música no jardim
tinha dor inexplicável.
Um cheiro de maresia
vinha das ostras no gelo.

Ele disse: " Sou fiel!"
e tocou-me no vestido.
Tão diverso de um abraço
era o toque dessas mãos.

Como quem acaricia
um gato ou um passarinho,
sorria, com os olhos calmos,
sob o ouro das pestanas.

A voz triste dos violinos
cantava, em meio à névoa:
" Dá graças a Deus que enfim
está a sós com o amado".


anna akhmátova
- no dia da mulher -

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

DE "SONHO NEGRO"

És sempre insólito e misterioso
e eu, a cada dia mais submissa.
Mas teu amor, ó meu amor tirano,
é uma provação a ferro e fogo.

Tu me proíbes de rir e de cantar,
de rezar já me proibiste há muito tempo.
Desde que a nos separar nós não cheguemos,
pouco te importa o que me aconteça!

Assim, estrangeira ao céu e à terra,
eu vivo e já não canto mais.
É como se afastasses minha alma peregrina
tanto do inferno quanto do céu.

ANNA AKHMÁTOVA
(Dezembro de 1917)

domingo, 9 de janeiro de 2011

caroli

chegou, linda e brejeira,
com o sorrisão de sempre que o Paulo de longe identificou. Depois de quase cinco anos!

domingo, 2 de janeiro de 2011

Comprar:

um cabide para pendurar o passado - suas tristezas -
um espelho para ver a alegria
e uma mesinha
para nela brindar a felicidade em 2011


maira e paulo


(escrito a giz, num quadro na nossa cozinha, o desejo.)

sábado, 1 de janeiro de 2011

EU NÃO VOU PERTURBAR A PAZ

De tarde um homem tem esperanças.
Está sozinho, possui um banco.
De tarde um homem sorri.
Se eu me sentasse a seu lado
Saberia de seus mistérios
Ouviria até sua respiração leve.
Se eu me sentasse a seu lado
Descobriria o sinistro
Ou doce alento de vida
Que move suas pernas e braços.

Mas, ah! eu não vou perturbar a paz que ele depôs na
praça, quieto.


manoel de barros, in face imóvel
( quis começar o ano com esse poeta que me surpreendeu e me encantou com o seu modo (guimarães rosa) de dispor das palavras...)